domingo, 6 de junho de 2010

De dentro pra fora



"Música começa pelo tesão. Se tu tem tesão, é esse o começo, é por onde se inicia o trabalho com música."

E foi durante uma noite comum em um dos bares de São Paulo, que um querido amigo e grande músico da atual safra de gigantes da música brasileira, me soltou essa afirmação. E hoje, tempos depois, me lembrei e me vi diante dessa frase pulando em meu cérebro; implorando por algo maior em torno disso. Suplicando por uma junção explicativa de como tudo surgiu, se conectou e virou palavras trabalhando em equipe pra dar todo sentido à quem lê. Pois bem.

O que te dá tesão? O que te faz gemer de prazer? Gritar de alegria? Hoje me questionei seriamente sobre isso. É como Rilke, em Cartas à um Jovem Poeta. Infelizmente, estou sem meu exemplar aqui (tenho costume de presentear queridos com este livro - já que é de bolso, barato e tão rico em palavras e lições) pra citar algum trecho. Mas, resumindo, Rilke pergunta: você morreria se não pudesse escrever? E o poeta responde - sim.

O que te faria morrer caso não pudesse fazer? Alguém aqui já parou pra indagar tal questão? E 'morrer' não significa um coração sem batimento. Não. Morrer está longe disso. Viver uma vida morta é tão fácil quanto respirar. Viver enquanto morto é acordar todos os dias simplesmente porque o despertador tocou e você tem um horário a cumprir. É concretizar um trabalho mais ou menos feito puramente para a garantia de um salário no fim do mês. É fazer tudo no automático; sem o prazer de tocar na marcha de segunda, terceira, quarta e quinta.

E o gosto, onde está? Os gemidos, os gritos, os risos de felicidade? Perderam-se no labirinto infinito de possibilidade humanas. Dissiparam-se dentre tantas responsabilidades e horários pré-definidos com tarefas incansavelmente entediantes. Responsabilidades essas na maioria das vezes sociais; onde a cobrança vem de fora, e não de dentro. E até que ponto é válido viver de fora pra dentro, e não de dentro pra fora?

A delícia do respirar está na espontaneidade. Na insônia filha da puta, que sim, vai proporcionar um dia sonolento amanhã. Mas que agora, nesse exato segundo das 02h57 da manhã de uma segunda-feira, está me dando o maior contentamento possível e inimaginável. Lidar com palavras e indagações humanas me dá tesão, me faz dar gritos de felicidade e me faz pensar na vida como uma única melodia. Aquela que durante seu curto tempo de notas, proporciona todas as sensações do mundo.

Eu quero sim meu dinheiro suado no final do mês. Eu quero a minha garantia de vida material - quem diz que não, é hipócrita - e o conforto de uma tranquilidade sã. Mas eu quero que tudo isso venha de um deleite suave e ao mesmo tempo gritante. Que venha de goles de vinho numa madrugada fria recheada de gargalhadas intermináveis. De noites solitárias acompanhadas de arte em todas as formas. Da inspiração causada por um sorriso até então desconhecido. De prosas poéticas. Eu quero que todo o trabalho saia do meu diafragma, e não dos meus ouvidos.

De dentro pra fora. É assim que as coisas deveriam ser pra todos. Sem cobranças, sem tristezas e sem a tecla de on/off. Eu voto pela obrigação de ficarmos ligados 24 horas por dia.

Porque enquanto a gente se questiona se faz o certo ou o errado de acordo com bocas que não são nossas, a vida passa e ninguém nem percebe.

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"Caso o seu cotidiano lhe pareça pobre, não reclame dele, reclame de si mesmo, diga para si mesmo que não é poeta o bastante para evocar suas riquezas; pois para o criador não há nenhuma pobreza e nenhum ambiente pobre, insignificante. Mesmo que estivesse em uma prisão, cujos muros não permitissem que nenhum dos ruídos do mundo chegassem a seus ouvidos, o senhor não teria sempre a sua infância, essa riqueza preciosa, régia, esse tesouro das recordações? Volte para ela a atenção. Procure trazer à tona as sensações submersas desse passado tão vasto; sua personalidade ganhará firmeza, sua solidão sem ampliará e se tornará uma habitação a meia-luz, da qual passa longe o burburinho dos outros."
(Rainer Maria Rilke)